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Memórias dos tempos de outrora


O cheiro do bolo de laranja quente enchia a cozinha, misturando-se com o vapor do chá acabado de fazer. O fim de tarde estava calmo, e eu adorava aqueles momentos com a avó, onde o tempo parecia abrandar e ficávamos apenas nós as duas, a conversar, especialmente agora que ela vivia longe.

— Vó, conta-me… porque decidiste imigrar para os Estados Unidos tão nova?

— Sabes, minha querida… Eu cresci numa aldeia piscatória. Lá, as casas eram simples, feitas de pedra e barro, e o som do mar acompanhava-nos a todas as horas. O meu pai era pescador, todos os dias saía ao amanhecer para o mar com os seus homens, e eu, quando ainda era criança, ia com ele, sempre de olho nas redes. Não havia eletricidade, a comida dependia do que o mar nos dava e do que a terra nos oferecia. A vida era dura, mas, na sua simplicidade, era bonita.

Ela suspirou, com um olhar perdido na janela, como se ainda pudesse sentir o cheiro do sal e ouvir o som das ondas quebrando nas rochas.

— Naquele tempo, as mulheres da aldeia ficavam em casa, cuidavam da terra e dos filhos. Eu, contudo, sempre fui diferente. Tinha um sonho mais largo, uma vontade imensa de explorar o mundo além das fronteiras daquele lugar. Apesar do meu pai não gostar da ideia, sempre me assustou a perspetiva de passar a vida à espera que eles voltassem do mar, como a minha mãe e as minhas avós.  Quando eu tinha 18 anos, soube que uma prima minha ia emigrar para os Estados Unidos, pois tinha conhecido umas pessoas que lhe iam arranjar trabalho e ela estava muito entusiasmada por construir uma vida nova, fazendo-me igualmente o convite para ir com ela. Durante semanas, sonhei com isso também. Um dia, consegui falar com o meu pai e com a minha mãe que me incentivaram a ir. A viagem foi difícil, mas no fundo eu sabia que tinha que arriscar. Parti com a minha prima, num navio onde só se avistava as densas águas do oceano.

Eu estava fascinada com a sua história e quis saber mais.

— E quando chegaste aos Estados Unidos, como foi?

— Cheguei a Nova Iorque passado 30 dias e foi como entrar noutro mundo. A cidade era uma selva de prédios, com pessoas de todo e por todo o lado, carros, ruas movimentadas... uma vida intensa e cheia de energia. Mas, ao mesmo tempo, era um lugar solitário. Abarrotada de imigrantes como eu, as ruas tinham um ar de promessa e de medo ao mesmo tempo. Eu estava lá, a começar do zero, sem ninguém da minha família para me ajudar. E, por mais que as coisas fossem diferentes e as oportunidades fossem maiores, havia uma barreira enorme que eu sentia todos os dias, a falta de dinheiro, a língua, as saudades… Trabalhava numa fábrica de costura, cheia de mulheres como eu, a costurar por horas a fio sem saber quando seria a próxima vez que descansaríamos. Os primeiros anos foram bem difíceis, minha filha. Mas o que me manteve lá foi o sonho, a vontade de um dia alcançar algo mais.

Eu escutava atentamente, totalmente impressionada com a força da avó.

- E quando foste parar a São Francisco?

A avó sorriu.

- Quando decidi ir atrás do meu verdadeiro sonho. Sempre gostei muito de mexer no cabelo, de fazer penteados, de transformar as pessoas. Então, num dado momento, guardei o pouco que conseguia e, após alguns anos, inscrevi-me num curso de cabeleireira. Trabalhava de dia e estudava à noite, mas foi uma virada na minha vida. Quando me formei, fui para São Francisco, onde os imigrantes estavam a crescer e a cidade começava a mostrar sinais de prosperidade. E foi aí que a vida me deu uma nova chance: arranjei um trabalho num salão, comecei a aprender novas técnicas, fiz novos amigos e, finalmente, consegui uma vida que nunca imaginei ter.

Eu fiquei emocionada com a determinação da avó.

- E por que decidiste voltar depois de tantos anos?

Ela olhou pela janela, como se lá fora pudesse encontrar parte daquela história que já tinha vivido.

- Porque o meu coração sempre ficou dividido entre dois lugares. A América deu-me a chance de construir uma vida, mas quando o teu avô partiu e eu me reformei, percebi que precisava de me reconectar com as origens. Eu precisava voltar, precisava da minha terra, dos cheiros do mar, das minhas raízes. Portugal é a minha casa, apesar da distância, da saudade, de todas as memórias que criei lá fora.

Fiquei silenciosa, absorvendo suas palavras.

— E o que foi mais difícil nesse processo de imigrar?

A avó ficou pensativa por um instante e depois respondeu:

— A pior parte… acho que foi a saudade. Foi saber que estava lá, num país longe, sem os meus pais, sem os meus irmãos, sem as raízes que me davam força. Mesmo que fizesse novas amizades, os laços de sangue estavam distantes.

— E, agora, do que sentes mais saudades?

A avó olhou para mim, os olhos brilhando de emoção.

— Agora tenho saudades dos jantares em família, do meu salão em São Francisco, de encontrar aquelas pessoas que ajudaram a construir a minha vida por lá. Já vivi em dois lugares que me marcaram de formas diferentes, e em cada um ficou com um pedaço do meu coração. Mas, sabes o que eu mais tenho saudades? De vocês, da nossa família, que ficou lá... Um dia ainda volto para junto de vocês novamente.

Segurei a mão dela com carinho.

— Estamos sempre contigo, vó, em todos os momentos. Mesmo estando longe, estamos sempre juntos, a tua família está aqui.

Ela olhou para mim e sorriu com aquele sorriso doce que só ela sabia dar.

— Eu sei, minha querida. Eu sei.

Nesse momento, retirei da bolsa uma pequena prenda com um sorriso. A avó olhou curiosa.

— Para que te lembres sempre de nós, trouxe este presentinho de uma loja que tu adoravas. Abre lá para veres o que é...

Ela abriu o embrulho com calma, e o sorriso no rosto ficou ainda mais radiante.

— Oh filha, que saudades desta loja e que linda toalha de chá! Vou já colocar na mesa, vai embelezar ainda mais a nossa conversa.

Esta toalha de chá da Cavallini & Co., era o símbolo perfeito da sua ligação com a cidade que a acolheu e da sua paixão pelas pequenas coisas que tornam a vida especial.

A avó, tocando suavemente o tecido da toalha, colocou-a na mesa com delicadeza, deixando-a enfeitar a nossa tarde. E naquela simples troca, senti que, independentemente de onde vivêssemos, a avó ainda guardava no seu coração todos os pedaços da vida que construiu.


 A coragem de largar tudo e mudar de vida

Mudar de vida exige mais do que vontade, exige coragem. A história da avó Maria mostra-nos o quão desafiador pode ser o ato de deixar para trás tudo o que se conhece, o que se ama e o que nos é familiar, na esperança de um futuro melhor. Abandonar o conforto das nossas raízes para embarcar no desconhecido é um ato de fé e de esperança que poucos estão dispostos a dar.

Muitas vezes, quem emigra leva consigo apenas a esperança e a determinação. Deixar a terra natal significa não só partir fisicamente, mas também enfrentar uma profunda transformação emocional. A avó Maria não levou apenas uma mala com roupas; levou sonhos, medos, e uma força interior que a impulsionou a seguir em frente.

O que torna essa coragem tão especial é a incerteza do que nos espera do outro lado. Será que as dificuldades compensarão os sacrifícios? Será que encontraremos um lugar para chamar de casa? A solidão, os desafios da língua, o preconceito e o peso da saudade tornam esta jornada emocionalmente exaustiva. Mas, ao mesmo tempo, há um crescimento que só acontece quando nos afastamos do que nos é conhecido.

No entanto, mudar de vida não significa apenas partir. Às vezes, o verdadeiro ato de coragem está em voltar. Voltar para aquilo que um dia deixámos, sabendo que nunca mais veremos o nosso lar com os mesmos olhos. Como a avó Maria percebeu, o regresso é um reencontro com o passado, mas também um confronto com a mudança inevitável do tempo. Nenhum lugar permanece o mesmo — e nós também não.

O mais bonito é perceber que, independentemente do lugar onde estamos, a verdadeira casa são as pessoas que carregamos no coração. Seja em São Francisco, seja numa aldeia piscatória de Portugal, como na história, a essência da felicidade está em estarmos rodeados de quem amamos. Porque, no final, a coragem de partir é também a coragem de encontrar um novo significado para a palavra lar.


February 12, 2025
Revirei bilhetes antigos, fotografias, cartas dobradas com cuidado e foi então que o encontrei: um postal. Pequeno, gasto pelo tempo, mas intacto na sua essência. Peguei nele com mãos trémulas e sorri ao reconhecer a letra desajeitada do Pedro.
February 5, 2025
Ao aproximar-me da máquina de café, reparei que o post-it continuava lá. Mas, em vez da frase anterior, tinha uma nova mensagem: "A única coisa que hoje é permitida estar fora de serviço são os teus medos! Aproveita o teu café."
January 22, 2025
E, para que a minha passagem por aqui não seja esquecida, deixo-vos agora também eu um postal, com uma mensagem personalizada para cada uma. Espero que este pequeno gesto sirva de lembrança do quanto significam para mim.
January 15, 2025
– Encontrei este caderninho antigo – disse, entregando-o nas suas mãos. – Era o meu diário quando tinha a tua idade. Li algumas páginas e lembrei-me de ti. Acho que vais achar graça, e talvez percebas que, por mais única que a tua dor pareça, há sempre quem compreenda e até tenha passado por algo semelhante.
January 8, 2025
Do saco, começou a tirar mantimentos: remédios, ingredientes para uma canja e até um chá especial. Foi direta procurar o meu avental, enquanto brincava: — Vou fazer-te um chá bem quentinho e uma canja. Ah, que avental lindo é este? Se desaparecer, já sabes onde procurar!
December 18, 2024
Desta vez, trouxe comigo uma caneca natalícia. Era realmente bonita, decorada com uma ilustração vintage do Pai Natal a sorrir docemente. Olhei para ela enquanto estava sentada num banco no autocarro a caminho de casa. “Sem dúvida, uma peça adorável”, pensei, passando o dedo pelo contorno da imagem
December 11, 2024
“Ah, os puzzles!” resmunguei para mim mesma. “Claro, os puzzles que comprei numa lojinha super fofa em frente a casa. Um é para fazer na noite de Natal e o outro é para oferecer ao meu irmão, com o mapa de Nova Iorque.
December 4, 2024
Corríamos para a lareira, onde os presentes estavam cuidadosamente colocados, cada um com etiquetas muito bonitas com os nossos nomes. Mas o mais mágico era que, para além das prendas, o Pai Natal deixava sempre um postal para cada um de nós.
November 27, 2024
Pegou numa tote bag antiga que usava frequentemente, cheia de desenhos de gatos, e passou a deixá-la com o Espiga sempre que saía de casa. Ele adorava o cheiro da avó e, surpreendentemente, começou a dormir dentro da bolsa.
November 20, 2024
Sentámo-nos à mesa da sala, afastando cuidadosamente a jarra de flores que estava ali a decorar. Abri o tubo do puzzle e, com delicadeza, retiramos o pano de musselina que envolvia as peças, espalhando-as pela mesa.
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